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SOLANGE HERNANDES, A CENSORA SEM CENSURAS


A voz é firme, de alguém que nunca se atrapalha com as palavras:

—É a Solange, Solange do Departamento de Polícia Federal.

Sexta-feira, 19 de março, 14h19. Passei os últimos dois meses a procurá-la e, agora, em menos de 24 horas, ela me achou. É quase impossível encontrar uma pessoa quando se começa pelo nome errado. Buscava Hernandes, Solange Hernandes, um dos personagens mais emblemáticos da história da censura brasileira. Mas o sobrenome famoso foi deixado de lado com o tempo. Até entender o fato, perdi alguns dias em registros e mais registros.


Solange em frente de casa, em Ribeirão Preto: Discrição para não ser incomodada por jornalistas e pesquisadores
Solange Maria Chaves Teixeira mora num bairro pacato de classe média-alta do município de Ribeirão Preto, a 336km de São Paulo e a outros 714km de Brasília, onde chefiou a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), entre 1981 e 1984, durante a gestão do então ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel. Hoje, o interior paulista serve de refúgio, onde Solange, aos 72 anos, evita qualquer contato com jornalistas, historiadores e até com os próprios ex-colegas da DCDP. Daí a surpresa com o retorno do telefonema da ex-censora no meu celular, afinal havia ligado para casa dela a partir de central telefônica onde os números que eventualmente aparecem no identificador de chamadas são falsos. “Eu não sou feroz, eu não mordo”, disse-me depois que agradeci o contato.

Solange pode até dizer que não é feroz, mas entre todos os antigos integrantes do quadro da DCDP foi ela que passou a ser considerada a mais autoritária. Personificou a censura como nenhum outro censor. A assinatura dela aparecia antes de programas de televisão e o primeiro nome virou tema de música do cantor Léo Jaime — uma versão esculhambada de So lonely(1) do grupo inglês The Police. O que diferenciava Solange dos chefes anteriores da DCDP era o método. Mesmo no fim do período militar, ordenou aos subordinados mais ação durante a análise das letras musicais e de filmes.

Um relatório de atividades de 1981 guardado no Arquivo Nacional de Brasília sobre a DCDP e as superintendências regionais da PF mostra um pouco do perfil da censora. A divisão tinha na época 279 funcionários, sendo 87 lotados em Brasília e o restante espalhados pelos estados. Ao longo daquele ano, foram analisadas 56.877 letras musicais. Ao todo, acabaram vetadas 1.168. Solange, entretanto, achava pouco. No documento, reclama da falta de dotação orçamentária própria e da carência de pessoal. E se explica de uma forma própria: “A (DCDP) é um órgão moderador entre a liberdade de criação e expressão dos artistas e criadores e o grande público receptor de suas mensagens”. Para uma antiga colega de Solange na DCDP, a chefe era o que se chama na linguagem policial de cintura-dura. “Nada escapava a ela.”

Senha

Aposentada como delegada da Polícia Federal, Solange prefere evitar o passado. No fim da conversa telefônica de nove minutos, pediu para não ser “importunada”. “Estou com viagem marcada para visitar os meus netos. E você deve imaginar como são essas viagens para ver os netos. Vou passar as próximas semanas fora. Não sei quando volto.” Não pediu para ler a reportagem do Correio antes da publicação ou tentou proibir o uso jornalístico do diálogo. “Estou anacrônica, meu caro repórter”, disse-me. A frase é na verdade uma senha. A dama de ferro da DCDP se considera tão anacrônica quanto a censura.

1 - Musa de Léo Jaime

Para provocar a censora, o compositor gravou Solange: `Eu tinha tanto para dizer / Metade eu tive de esquecer / E quando eu tento escrever / Sou imagem vem me interromper / Eu tento me esparramar / E você quer me esconder / Eu já não posso nem cantar / Meus dentes rangem por você / Solange, Solange, Solange

Refúgio paulista

Ullisses Campbell
Enviado especial


Ribeirão Preto — Na pacata cidade do interior paulista, poucos sabem quem é Solange Maria Chaves Teixeira, 72 anos. A mulher que foi o maior expoente da censura está refugiada no bairro nobre de Ribeirânia, um oásis de casas e chácaras isoladas, ideais para quem não quer ser incomodado. O condomínio lembra o Lago Sul, local onde a ex-censora morava quando vetava obras artísticas em Brasília. Solange é discreta.

“Até onde eu sei, ela trabalhava no governo, mas ela nunca contou o que fazia”, diz o ferramenteiro aposentado Roberto Scatralhi, 65 anos, vizinho de Solange. A casa de Solange é cercada por uma muralha grossa de 4m de altura. No alto, cerca elétrica. Na segunda semana de abril, o Correio acompanhou por dois dias a rotina da ex-censora. Simpática, quando passa pelos vizinhos diz bom-dia, boa-tarde, boa-noite, mas não estende a prosa. “Sabe que eu sempre falo com ela, mas ela nunca me contou com o que trabalhava”, admira-se a vizinha Norma Santos, moradora da casa ao lado.

Alguns vizinhos chegam a entrar em sua casa para ver uma flor. “Ela é uma senhora inteligente, mora numa casa muito bonita, mas fala muito pouco da vida pessoal. Só sei que ela mora só e tem um filho”, ressalta Scatralhi.

Antes de morar em Ribeirão Preto, Solange fixou residência no bairro de Pinheiros, em São Paulo. As constantes investidas de vizinhos e o medo que tem de ser descoberta por jornalistas, pesquisadores e historiadores fizeram com que ela se encastelasse no interior paulista. Mulher de poucos amigos, passa a maior parte do tempo sozinha. Tem duas empregadas que são orientadas a não passar informação alguma sobre sua rotina.

A professora universitária Isabel Pedroni, 44 anos, ficou surpresa quando descobriu que a vizinha chefiou a censura. “Ela não deveria se envergonhar de ter feito esse trabalho. Até porque era natural censurar obras de arte nas décadas de 70 e 80. Ela deveria era contar em um livro os bastidores dessa atividade. Isso ajudaria o brasileiro a entender os critérios que os censores usavam para vetar as obras.”


A sanha dos burocratas

O conteúdo de ofícios trocados entre os chefes da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) e os superintendentes da Polícia Federal mostra a insatisfação de altos burocratas com a falta de regras e de estrutura para o trabalho durante a ditadura militar. As reclamações, porém, contrastam com o número de letras musicais analisadas pelo órgão, que, em um ano, chegou a 50 mil. O Correio teve acesso aos relatórios dos censores produzidos entre 1963 e 1986 e guardados na sede do Arquivo Nacional no Rio e na coordenação regional do órgão em Brasília. Entre 2 de janeiro e 17 de novembro de 1969, por exemplo, os técnicos analisaram 51.662 letras — dessas, segundo o relatório, 395 foram proibidas.

Um dos relatórios foi produzido em 1974 e assinado por Hugo Póvoa da Silva, diretor em exercício da divisão. Em março daquele ano, o órgão contava com 34 técnicos e 48 funcionários administrativos. Silva diz que o ideal seriam 147 censores: 96 para avaliação de filmes, 24 para televisão, cinco para letras musicais, 10 para cargos de chefia e 12 “efetivo em férias, por mês”.

Preocupação

Uma carta de janeiro de 1985, escrita por João Bispo da Hora — então chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas no Rio Grande do Sul — e endereçada à temida diretora da DCDP, Solange Hernandes, mostra a preocupação dos técnicos com a carreira: “Sabe V.Sa. muito melhor do que nós das dificuldades encontradas na reforma da legislação, na recolocação do quadro de técnicos da censura no seu devido lugar dentro do DPF (...), enfim, nas definições necessárias para evitar aflições e ansiedades, para dar mais segurança”.

Três meses depois da carta de João Bispo da Hora a Solange Hernandes, os serviços dos técnicos não eram mais necessários. Com a posse de José Sarney na Presidência, Solange deixou o cargo — e acabou substituída por Coriolano Fagundes, que iniciou a transição para a democracia na DCDP, extinta com a Constituição de 1988.

Uma carta sem assinatura recolhida por funcionários do Arquivo Nacional no Rio em meio a documentos produzidos por censores na superintendência da PF fluminense na década de 1990 mostra o esperneio dos técnicos da DCDP. Um funcionário se mostra insatisfeito com a notícia de um evento com a presença de artistas e do então ministro da Justiça Fernando Lyra, em julho de 1985, no Teatro Casa Grande. O censor temia que, a partir dali, os músicos se sentissem desobrigados a enviar letras à divisão. O homem ainda não sabia, mas o trabalho tinha chegado ao fim. (LC)


História da repressão

No Brasil, o controle da produção artística marcou o Estado Novo (regime dirigido por Getúlio Vargas, entre 1937 e 1945) e a ditadura militar (1964-1985). No primeiro período, era comum o uso de estratégias para convencer os artistas a cooperar com a propaganda oficial. Já com os militares, a repressão se deu de forma mais violenta, num confronto muitas vezes direto — que atingiu o ápice de agressividade após a instalação do AI 5, em 1968. Técnicos da PF eram orientados a vetar canções segundo critérios políticos e morais. Com a Constituição de 1967, foi criado um setor específico, subordinado à PF, para gerenciar os vetos: o Serviço de Censura e Diversões Públicas, rebatizado em 1974 como Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP). Em 1979, a criação do Conselho Superior de Censura (colegiado com representantes do governo e da sociedade civil) abrandou a atuação da DCDP e apontou para o fim da linha dura. Mas, em descompasso à abertura política, a atuação dos censores adentraria a Nova República e assombraria a criação artística até a Constituição de 1988.E a pergunta fica no ar: Nunca será punida?